19 Novembro 2016
"A coisa está feia mesmo. O neoliberalismo e a democracia liberal são formas de maximizar a elite financeira e debilitar o direito político da maioria. Agora o ovo da serpente está chocando", constata Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Eis o artigo.
Para aprofundar no debate após as primeiras análises da vitória de Trump e as falências da democracia representativa, proponho o seguinte raciocínio. O sistema político e a regra eleitoral dos EUA formam o máximo do modelo federalista oligárquico (de Madison), justo o oposto ao federalismo igualitário (como o defendido por Artigas). Isso gera a loucura de que a maioria não leva. Lá, não se trata de respeitar direitos de minoria, mas garantir poderes de oligarquias e votos de protesto de grupos sociais ressentidos. Isso é um problema para qualquer governo, por mais idiotizado que seja (e é) o eleitor médio.
O outro problema é que na democracia liberal os candidatos não expressam a vontade geral e sim a vontade passa por escolhas pré-determinadas pelo poder do dinheiro. A vitória de Trump tem a ver com isso. Afro-americanos e latino-americanos não confiavam nela (Hillary) - o que é correto - e tolerava menos ainda a Trump. Por isso o clima de revolta, não só com a escolha de Trump, mas com uma sociedade que se deixa manipular por racistas, xenófobos, misóginos e fundamentalistas neopentecostais.
Insisto, nos EUA, a subdemocracia é na base da eleição indireta. Logo, os colégios eleitorais e os subsistemas políticos estaduais são decisivos. Assim, os votos da Flórida e do Meio Oeste viraram a corrida pelo voto dos delegados. A democracia indireta sempre pode errar na conta dos votos ou no descontrole do poder do dinheiro na escolha dos candidatos.
O que era silencioso grita. A fratura da AmeriKKKa segue enorme, mas agora barulhenta. Os efeitos societários são enormes em países com tensões étnico raciais e de gênero como os nossos da América Latina.
No território do Império, os demônios estão soltos e é o momento de enveredar pelos caminhos de Artigas e afirmar: "só podemos contar com nós mesmos!". Ou seja, a derrota do fascismo depende do povo organizado e não dos liberais assustados ou – como aqui - da ex-esquerda arrependida.
Junto com Trump outros personagens reaparecem. A ex-governadora do Alaska – caricatura da bolha conservadora - e ex-candidata a vice-presidente de John McCain em 2008, Sarah Palin, está de volta ao cenário político nacional na superpotência. Junto a ela uma série de bestializados fundamentalistas e outros ainda mais à direita.
Aparentemente, Trump era o candidato dos conservadores, mas não só. Existe uma falsa polêmica, se Trump era o favorito ou não de Wall Street. Não, não era; a candidata oficial dos especuladores era Hillary Clinton. Mas, o vice-presidente eleito de Trump é homem de extrema confiança dos irmãos Koch. Logo, Wall Street elegeu por tabela o novo vice, Mike Pence (governador do estado de Indiana) o intermediário de Trump junto aos lobistas e os oligarcas do Partido Republicano. Noam Chomsky - em velocidade máxima - analisou a montagem do governo Trump através das hienas dos lobbies corporativos de sempre. Em Washington o personagem bufão vai deixar de aparecer tanto e governará para sua classe. Na base da AmeriKKKa profunda, o caldeirão do inferno já está fervendo.
O que mais preocupa são as relações sociais cotidianas, e o engajamento ultra-conservador e de intolerância desavergonhada das camadas brancas e empobrecidas. O efeito indireto de encorajamento de intolerâncias assumidas em países como o Brasil, uma colônia cultural, identitária e de linguagens subordinadas às culturas estadunidenses pode ser impressionante. Na política externa pouco muda para a América Latina, não de forma imediata, mas internamente, dentro do território dos EUA, aí sim pode ser dar uma escalada de conflitos baseados no pior da AmeriKKKa profunda.
Não se trata de um governo fascista, nem nada por estilo; mas do senso de oportunidade aberto para um azarão - correndo por fora - do sistema político mesmo sendo parte dele como classe dominante ativa. Noam Chomsky também previu o espaço político aberto para caso se apresentasse um candidato com reputação honesta e com carisma. Trump é um canalha, picareta, mas carismático. Ele e a bolha ultra-conservadora deixaram de lado a oligarquia republicana e se jogou nos tentáculos do Tea Party. Estava tudo dito, e a massa branca e ignorante, além de preconceituosa, preparada por crápulas como o radialista Rush Limbaugh e os seguidores alucinados de Sarah Palin (aqui já citada). Uma massa frustrada e conservadora é arma da direita raivosa e também da demência neoliberal. Votaram em Trump porque fingiu ser quem não era, e prometer o que nunca faria.
Isso é que é intolerável. Uma parte relevante da votação pelo Trump veio pelo recalque e a indignação dos trabalhadores reacionários brancos. Repito, Donald Trump não é fascista, é um canalha que manipula os sentimentos obscuros da AmeriKKKa racista.
Como candidato de racistas e em um país assolado de factoides políticos conservadores, a bolha expandiu para além das mídias especializadas ou com segmentos mais conservadores, como a Fox News. A presença midiática de Trump foi gratuita. Ele criava factoides polêmicos e tinha cobertura instantânea. Ao mesmo tempo, os delegados democratas – e em especial os superdelegados que controlaram a Convenção Democrata - subestimaram o potencial destruidor dos vazamentos do Wikileaks e a atuação absurda de Hillary Clinton na Líbia. O recado parece dado aos brasileiros. Quem manda subestimar o poder dos conglomerados midiáticos?
Na noite da vitória e nos dias seguintes, houve protestos simultâneos. Comunidade LGBT, Afros, Latinos, pânico de muçulmanos. Protestos em NYC, Seattle, Philadelphia, Chicago, Los Angeles, Oakland, Austin e dezenas de outras cidades. E tudo isso só está arrancando.
Também de imediato começou a repressão política. Balas de borracha e bombas de gás contra a população em movimento dizendo "not my president". O dia a dia da militância vai ficar parecido com o dos bairros latinos e negros dos EUA. Outra previsão imediata é que os protestos anti-Trump vão ter como consequência a repressão, desmonte e demissão de jornalistas.
As organizações sociais de base não rejeitam “apenas” o fato da propaganda e campanha intolerante que saiu vitoriosa no colégio eleitoral. Trump abusou dos manipulados. Passou a campanha inteira xingando os lobistas. Agora recruta toda a imundície republicana para saquear a superpotência ao seu lado. Bush Jr também ri à toa, assim como staff conservador que não participou diretamente do governo Obama – a parcela que atuou no início da Era Obama, como Larry Summers e outros sociopatas que fazem a defesa de Wall Street a partir de posições acadêmicas privilegiadas nunca se preocupam de ficar de fora do governo.
Outro fator que motivam os protestos, especificamente de eleitores democratas é a regra da democracia indireta. Os resultados não corresponderam aos delegados indicados, novamente, tal como em 2000 e em momentos anteriores. 46,9% simplesmente não foi votar; 25,6% votaram em Hillary; 25,5% em Trump e 1,7% no ultra liberal Johnson.
A coisa está feia mesmo. O neoliberalismo e a democracia liberal são formas de maximizar a elite financeira e debilitar o direito político da maioria. Agora o ovo da serpente está chocando.
Hillary Rodham Clinton e Donald Trump fazem parte dos 1% mais ricos da sociedade mais opulenta do planeta. O primeiro como homem de negócios inescrupuloso. A segunda como uma arrivista através da política profissional e relações familiares. Nada disso empolga o eleitorado “progressista”. Viram porque Trump foi eleito? Viram porque negros e latinos não se motivaram para votar? Deu para constatar que não adianta chamar o adversário de grotesco e aparecer antes confraternizando com o inimigo?!
O fascismo nunca é "engraçado" e não podemos ter nenhuma tolerância com os intolerantes. Toda pregação racista, homofóbica, xenófoba ou misógina deve ser severamente combatida. O inverso também é verdadeiro. Agora mais do que nunca, é preciso mergulhar nos valores da cultura popular dos renegados do "novo mundo", nas matrizes africanas, latino-americanas, indo-americanas, de quem vive do trabalho e dos ícones do passado. Lendo as notícias e acompanhando a cobertura bastante assustada – justificadamente assustada – da CNN eu só imagino como está o ambiente no Bronx (NYC) agora. Um bairro lindo, lindo, cheio de porto-riquenhos, dominicanos, hondurenhos, mexicanos, equatorianos, colombianos e nicaraguenses.
Também imagino como estão os ânimos na fronteira do sudoeste (Texas, Arizona e Novo México) e também a fronteira da Califórnia, na antiga Aztlán (o território que os imperialistas roubaram dos hermanos mexicanos em 1848).
Parece uma nova corrida do ouro, com toda a destruição que isso acarreta. As primeiras promessas, logo no discurso de comemoração, indicam o tipo de governo dos EUA que vem aí: "acabar com o Obama Care - o programa de saúde de Obama"; "liberar todas as áreas das cidades, todos os lugares são permitidos porte de armas, mesmo perto de escolas"; "varrer os imigrantes ilegais do país" (não sei como aumentar a expulsão, pois o governo Obama expulsou mais de 2 milhões e 500 mil pessoas, a imensa maioria de origem mexicana) “rever aceleradamente os termos do NAFTA”.
Uma campanha xenófoba alimenta a outra, a julgar pelo Brexit. Todos e todas temos críticas à mundialização capitalista e a democracia liberal representativa. A diferença é que a esquerda não autoritária não caiu nessa lengalenga, o cidadão comum sim. A decepção e o recalque são armas poderosas para a reação. Logo, é sobre esta cidadania semi-abandonada, decepcionada, onde temos de trabalhar – tanto aqui como lá – enquanto afirmamos, simultaneamente, a urgência de valores à esquerda, mas de base decolonial e intercultural. Do contrário os imbecis serão recrutados novamente, e a tragédia pode se consumar – de vez - no cenário político brasileiro.
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Trump venceu as eleições indiretas nos EUA: entre as manipulações e os demônios à solta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU